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Capítulo 107 - Ybyty Poty

  A luz do sol se filtrava pregui?osamente pelas copas das árvores, projetando sombras inquietas sobre a trilha à frente. A floresta parecia congelada no tempo, envolta em um silêncio t?o denso que até mesmo o som dos passos de Ana e Miguel parecia abafado.

  Ana, com a longa espada enrolada em um tecido áspero nas costas, movia-se com a habitual confian?a, mas algo na quietude ao redor parecia se agarrar à sua pele, trazendo lembran?as desconfortáveis à tona.

  — Essa viagem foi... tranquila demais — comentou a rainha, com um tom que denunciava sua crescente inquieta??o. — Digo, tranquila além do normal. Esse silêncio... está mórbido. A floresta está estranha.

  Miguel, que caminhava ao lado, apenas assentiu, mas n?o p?de deixar de compartilhar o desconforto de Ana. O ar estava pesado com uma quietude que beirava o sobrenatural.

  — Sabe — Ana continuou, com um tom casual. — Houve uma época em que eu realmente tinha uma queda por plantas. Antes mesmo de come?ar a esculpir as estátuas.

  O secretário mascarado piscou, surpreso pela mudan?a abrupta de tema. Ele n?o conseguiu evitar uma risada suave, confuso.

  — Uma… queda? — repetiu ele, tentando entender o que ela queria dizer.

  Ana sorriu de canto, gostando da rea??o dele.

  — é como um fascínio, uma paix?o. Elas faziam eu me sentir menos sozinha, e eram t?o belas…

  — Entendo, ent?o você gostava de plantas?

  — Isso! — ela se inclinou ligeiramente em sua dire??o, seu tom assumindo um ar conspiratório, como se estivesse prestes a revelar um grande segredo. — Mas depois eu percebi que elas s?o meio nojentas. Se acham no topo do mundo só por serem cheias de vida, sempre crescendo, sempre evoluindo. T?o mesquinhas.

  O mascarado tossiu, pego de surpresa pela revela??o. Ele tentou disfar?ar a risada, recompondo-se rapidamente.

  — Acho que... talvez seja melhor deixar esse assunto pra lá — sugeriu ele, sorrindo de forma divertida. — Parece que já estamos bem próximos.

  Com o término das palavras, as sombras escuras das árvores come?aram a dar lugar a contornos familiares: os restos de uma antiga aldeia come?aram a emergir da vegeta??o densa. Estruturas parcialmente encobertas por vinhas, galp?es decrépitos e ruínas estavam entrela?ados de maneira quase simbiótica com a floresta ao redor. A fus?o entre o que era natural e o que fora construído pelo homem dava ao lugar uma sensa??o de desola??o e mistério.

  Ana resmungou, franzindo o cenho.

  — Já consigo sentir os olhares — ela fez um som de irrita??o, um "tisc" audível, e ent?o olhou ao redor, incomodada. — Como é que plantas têm tecnologia se nem ao menos constroem casas?

  — N?o deixaram tudo ao relento, guardaram tudo que puderam em galp?es bem antes das muta??es come?arem — explicou Miguel, calmamente. — Eles têm uma certa paix?o pelo antigo. E na verdade ainda usam tecnologia, só que de um jeito que n?o é t?o visível.

  Ele apontou para umas vinhas mais espessas, que se ramificavam para diferentes dire??es, se entrela?ando de forma simbiótica entre árvores e estruturas. Ana arqueou uma sobrancelha, claramente mais intrigada do que antes. Com um movimento rápido, pegou uma pequena faca da cintura.

  — N?o fa?a isso…

  — Para de ser chato, eu só quero dar uma olhada.

  Antes que o mascarado pudesse protestar mais, Ana fez um corte limpo em uma das vinhas menores, puxando-a para frente dos olhos. Um sutil ruído foi ouvido quando as duas partes se separaram, e a mulher a encarava com olhos t?o brilhantes quanto os de uma crian?a.

  — Mana sempre surpreende… isso é biotecnologia a um nível surpreendente! Pela forma que foram construídas, s?o dispositivos de som?

  Miguel assentiu, balan?ando a cabe?a de incredulidade enquanto se aproximava, também observando o estranho dispositivo.

  — Eles s?o mudos — explicou o homem, seu tom assumindo um tom mais sério. — Pelo menos, da forma como nos comunicamos. Já os vimos algumas vezes fora da aldeia. Sempre carregam rádios, fitas cassete... faz parte de como eles se comunicam com o mundo.

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  Ana ficou em silêncio por alguns segundos, absorvendo a informa??o.

  — Isso é... incomum — murmurou, com mil possibilidades e perguntas vagando por sua mente. — Mas um conceito fascinante.

  Finalmente, Ana e Miguel cruzaram o limite invisível de Ybyty Poty. à medida que avan?avam, os habitantes da cidade come?aram a surgir das sombras entre as árvores. Eles se aproximavam de todos os lados, seus passos eram t?o suaves que mal podiam ser ouvidos, e a aura de quietude ao redor deles apenas aumentava o desconforto.

  Ana suspirou, seus olhos imediatamente se estreitando em desconfian?a. Instintivamente, ela levou a m?o às costas e desprendeu a trouxa, come?ando a desenrolar a longa espada. O metal frio da lamina, ainda meio coberta pelo pano desgastado, a confortava de uma forma estranha.

  Feito isto, apoiou a arma no ch?o, em uma postura clara de prepara??o para o combate. Mesmo com os pelos da nuca arrepiados, estava meio confusa. N?o era um alarme falso, mas também n?o havia uma amea?a imediata ou hostilidade nos seres que ela via. Miguel, ao perceber o movimento da rainha, sacou sua espada curta, mas deu alguns passos para trás, seu corpo mais tenso e menos preparado para a calma que Ana demonstrava.

  — Oi? — Ana disse, com uma sobrancelha levantada, sem saber como reagir a falta de resposta. Lentamente, se virou para o mascarado que a acompanhava. — N?o seria mais fácil só matarmos todos e pegarmos o que precisamos? Isso parece uma perda de tempo...

  Miguel arregalou os olhos e balan?ou a cabe?a lentamente em negativa, quase incrédulo pela falta de no??o da mercenária em uma situa??o como aquela. Ela suspirou, visivelmente entediada com a resposta contida dele. Fincou a espada no solo com mais for?a e cruzou os bra?os.

  — Ent?o foda-se, vamos só esperar.

  O povo verde n?o esbo?ou desgosto pela sugest?o violenta, tampouco pararam. Continuavam se aproximando em um ritmo quase coreografado, e aos poucos a humanidade vegetal deles se tornava mais aparente.

  Seus corpos eram formados de camadas entrela?adas de folhagens e caules, contendo muitas plantas nativas vistas pelo local. Costelas-de-Ad?o criavam um belo mosaico ao se estender por suas extremidades, bra?os que se curvavam como lianas serpenteantes, com veias esverdeadas que pulsavam suavemente por baixo da casca escura.

  Algumas partes exibiam flores que lembravam a Orquídea Negra, enquanto outras eram revestidas com folhas que se assemelhavam ao Ipê-Amarelo. Suas faces variavam em formatos e cores, mas todas eram adornadas com belas pétalas de Flor-de-maio. Seus olhos pareciam ocos, apesar de n?o t?o vazios quanto os dos mascarados, como se estivessem profundamente imersos na simbiose entre planta e humano.

  Vendo mais de perto, havia algo bizarramente gracioso em como eles se moviam, com pequenas partes arrastando-se pelo ch?o, como se sentissem o solo a cada passo.

  E ent?o, sem aviso, os seres come?aram a circular ao redor de Ana de forma lenta e metódica. Era como se eles estivessem dan?ando ao redor dela, movendo-se com uma precis?o fluida. Vinhas se estendiam suavemente até sua pele, deslizando como se estivessem explorando a textura de sua carne e tecido, com uma mistura de curiosidade e reverência.

  — Fascinantemente estranhos — murmurou Ana, sem parecer particularmente abalada pela estranha dan?a. Ela tocou a pele deles assim como estavam fazendo, sentindo a textura áspera e, com um movimento brusco, estourou uma das vinhas que se enrolavam em seu dedo. — Olha isso, Miguel. Nem sequer reagiu! Esses corpos s?o incríveis!

  — O que está...

  Antes que ele pudesse terminar a frase, uma das mulheres-planta, cujo corpo estava quase inteiramente coberto de pétalas, se aproximou com uma coroa feita de flores vibrantes. Com movimentos lentos e delicados, ela a colocou sobre a cabe?a de Ana.

  A mercenária n?o p?de deixar de notar que as flores da sua coroa eram excessivamente parecidas com as que compunham o próprio corpo da habitante que a “presenteou”.

  Ainda imóvel, virou-se novamente para o mascarado em busca de algum tipo de explica??o, apenas para se deparar com outra habitante, semelhante à primeira, adornando com um colar de flores. Os dois se entreolharam, compartilhando um momento de confus?o mútua.

  — E ai? Agora podemos come?ar a cortá-los antes que fique ainda mais bizarro?

  — Talvez…

  Foi ent?o que, de repente, um alto som de estática tomou conta do lugar, quebrando a misteriosa cena. Era um ruído agudo, cortante, que parecia reverberar de todos os lados.

  Ana olhou na dire??o do som com certo desconforto, até que a viu. Uma mulher se aproximava em passos lentos, mas cheios de autoridade. Ela era uma vis?o que mesclava o grotesco e o maravilhoso, com o corpo curvado pela idade, mas ainda elegante. Sua pele vegetal brilhava com o reflexo de luzes tênues e seu rosto, uma mistura de humano e uma planta carnívora, lembrava a boca de uma Dioneia, com fileiras de "dentes" plantíneos delineando suas fei??es.

  Em suas m?os aparentemente frágeis, a mulher carregava um rádio antigo, cujos circuitos pareciam entrela?ados com raízes que se conectavam diretamente ao seu corpo, como se ela fosse uma com o aparelho. A estática aumentava a cada passo que dava, até que finalmente parou diante dos dois visitantes.

  Com um leve toque no rádio, o som de estática se ajustou. Entre os ruídos distorcidos e o chiado, uma voz grave e rouca emergiu, quebrando o silêncio que até ent?o dominava a aldeia.

  — A natureza... nunca esquece.

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