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Capítulo 129 - A Arte da Destruição

  — Tem certeza que n?o quer levar um bode? N?o parece, mas s?o bem rápidos.

  — Sim, tenho certeza.

  — E o Garm? — insistiu o pugilista com uma teimosia que parecia testar a paciência de Ana. — Ele n?o se importaria de ir com você.

  — Chega, Alex. — sua voz estava firme, mas fatigada. — Estou há meses sem um momento de paz. Vai ser bom relaxar a mente... sozinha.

  — Está virando um padr?o... essa sua inconsequência. O que custa deixar alguém te acompanhar?

  Ana parou bruscamente, virando-se para ele com um olhar de puro desgosto.

  — Chegou a hora de me fortalecer. Estou enferrujada, muito, muito, enferrujada! No pior dos cenários... eu morro. E daí? — ela deu de ombros, voltando a revisar sua mochila. — Que diferen?a isso faz? Sozinha, n?o vou mudar o rumo dessa guerra de qualquer forma. Vocês conseguem se virar.

  O silêncio que se seguiu foi quase palpável, e logo ela notou que todos ao redor a encaravam, desconfortáveis com sua indiferen?a. Ela suspirou de novo, mas desta vez suavizando o tom.

  — Só vou ca?ar por alguns dias, meu amigo — murmurou, os olhos voltados para a floresta ao longe. — Já passou da hora de dar aten??o pra essa velha amiga. — completou com um resmungo, ajeitando a espada negra enrolada em couro em suas costas com um toque carinhoso.

  — Ca?ar? Você vai literalmente para um reino inimigo sozinha!

  — Esse é só o b?nus, n?o a raz?o principal — um sinuoso sorriso apareceu em seus lábios, sutil, mas n?o despercebido. — A n?o ser que dê para juntar os dois objetivos em um só. Isso pouparia tempo.

  O homem suspirou, desistindo da batalha perdida para tentar convencer sua líder. Cruzou os bra?os e lan?ou um olhar para Fernando, que estava ao seu lado com sua rabugenta máscara vermelha habitual. Com uma cotovelada suave, incitou o companheiro, que apenas se espregui?ou teatralmente, hesitando antes de falar.

  — O que foi? Vai me encher o saco também? — perguntou Ana, arqueando uma sobrancelha.

  O segundo conselheiro de guerra, meio desconfortável, se endireitou enquanto tentava encontrar palavras.

  — Bem... nós... estávamos conversando e... com tudo o que está acontecendo, achamos que talvez você pudesse nos... instruir. — Ele parou, buscando apoio.

  — A verdade é que atingimos nosso limite — continuou Alex. — As estátuas n?o podem se fortalecer da maneira tradicional, n?o tem músculos para treinar. Elas precisam de algo mais... de inspira??o. Precisam ir além da técnica, além do que já conhecem.

  — Há também os novos soldados... — Fernando complementou. — N?o est?o t?o avan?ados, mas ter uma orienta??o da rainha com toda certeza os daria animo para colocarem um pouco mais de esfor?o nisso tudo.

  Ana bufou, balan?ando a cabe?a com irrita??o, mas seus olhos brevemente capturaram o olhar de Alex. Lá, no fundo de seus olhos cansados, ela viu algo. Respeito, sim, mas também uma tristeza velada, uma preocupa??o que parecia o corroer por dentro. Fernando, ao lado, tentou n?o encarar por muito tempo, mas seu silêncio dizia tudo. Eles tinham… medo.

  — Vocês esperam muito de mim. N?o tenho nada a dizer que vocês já n?o tenham dito.

  — N?o é uma ideia ruim, Ana. Apenas considere por um momento — Gabriel, o anjo de pedra, que até ent?o estava em silêncio, interveio com sua habitual serenidade.

  Ana o encarou com irrita??o, mas logo sorriu em uma desistência resignada. N?o adiantava ter conselheiros se n?o fosse seguir seus conselhos.

  — Vocês têm uma hora para reunir todos no port?o. Vai ser uma aula rápida. Depois disso, eu parto.

  Alex e Fernando se entreolharam, surpresos por terem conseguido convencê-la, mesmo que sem entusiasmo. Sem perder tempo, ambos acenaram rapidamente e correram em dire??o à fortaleza para reunir todos que conseguissem do pequeno exército de Insídia.

  Terminando seus preparativos, Ana caminhou até uma árvore retorcida, cujas raízes gigantescas saíam do ch?o desordenadamente. Ela se sentou entre duas delas, o corpo afundando lentamente no conforto que a natureza proporcionava. O som suave das folhas ao vento e a brisa fria trouxeram uma calma inesperada. Os minutos passaram devagar, a tranquilidade da floresta envolvendo-a como um cobertor de memórias distantes.

  Seu olhar vagou até seu conselheiro principal, que permanecia imóvel ao seu lado. Havia uma certa melancolia no cenário, um sentimento que provinha das vagas memórias dos primeiros anos de sua solid?o, quando Gabriel costumava ficar, daquela mesma forma, a acompanhando de forma silenciosa, enquanto os anos passavam sem pressa.

  — Como é que eu passei mil anos ao seu lado sem nunca perguntar sobre isso? Mesmo no fim, n?o parecia que as estava usando…

  Suas sobrancelhas inconscientemente se franziram enquanto finalizava seus sussurros, e n?o p?de deixar de lan?ar o questionamento ao sósia.

  — Suas asas podem voar?

  Gabriel olhou para ela com seus olhos frios por trás da máscara, intrigado pela casual pergunta.

  — Infelizmente, n?o.

  — Imaginei... — Ana desviou o olhar para o céu. — Ainda assim, o movimento delas é bem realista para asas de pedra. é incrível.

  Ela passou alguns segundos em silêncio. Memórias vagas surgiam sem parar, mas se dissolviam t?o rápido quanto.

  — Você está disposto a morrer aqui, Gabriel?

  O anjo de pedra inclinou a cabe?a, confuso.

  — N?o entendi a pergunta.

  — Está disposto a abrir m?o da sua imortalidade por... isso? — a mercenária fez um gesto vago com a m?o, apontando para o reino ao longe.

  Gabriel se sentou em uma das raízes próximas a ela, pensativo. Ele olhou para o horizonte da floresta, onde as sombras dan?avam ao vento.

  — No come?o, sequer imaginei que seria possível. Mas este lugar... nos deu algo... algo que nem sabíamos que existia. Um desejo de proteger. N?o só você, Ana... mas todos. O reino. As pessoas. Nos deu um propósito.

  Ana o encarou, surpresa com a honestidade que vinha da voz. Pela primeira vez, Gabriel n?o falava como uma estátua ou uma parte inerte do mundo ao seu redor.

  — Era só... imita??o. Copiávamos gestos, sorrisos, express?es, bord?es.

  — Era ridículo. Parecia que tínhamos atores amadores por toda parte. Bem, combinava com as máscaras — Ana sorriu, lembrando-se do nascimento da cidade.

  Gabriel riu suavemente, um som quase imperceptível, mas que fez novamente os cantos dos olhos de Ana tremerem pelo ato inesperado.

  — Sim, era meio c?mico — ele admitiu. — Mas, com o tempo, absorvemos aquilo. Hoje n?o existimos... vivemos. Talvez ainda n?o como os outros... mas eu n?o me sinto mais vazio

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  “Eu…", refletiu Ana, notando a provavelmente involuntária troca para o singular.

  Ela abaixou a cabe?a, brincando com um galho que havia pegado do ch?o, tra?ando formas aleatórias na terra.

  — Sinto muito, Gabriel.

  — Pelo quê? — ele perguntou, surpreso.

  — Por te deixar mais fraco. — respondeu Ana, sem levantar o olhar.

  Gabriel balan?ou a cabe?a suavemente, negando.

  — N?o estamos mais fracos. Estamos mais... completos.

  — é. Talvez... — sua voz saiu como um sussurro, baixa e sem convic??o, mas o conselheiro de pedra n?o pareceu se importar.

  Os dois ficaram ali, encarando o vazio, cada um em uma reflex?o própria sobre o conversado, até finalmente serem despertados pelo alto som de passos.

  Um punhado de gente vinha em sua dire??o, com Alex logo ao lado. N?o passavam de cem, uma fra??o dos soldados e moradores, mas seria suficiente para o que Ana pretendia. Ele se aproximou, respirando fundo enquanto o grupo se reunia.

  — Eu os trouxe. Fernando está vendo se mais alguém aparece — disse Alex, ofegando.

  A rainha passou os olhos por cada um dos voluntários. Soldados e mascarados entre eles acenaram em reconhecimento, enquanto os recém-chegados, os novos moradores da cidade, recuavam discretamente diante de seu olhar penetrante, sucumbindo ao peso da autoridade.

  — Hum-hum — o som de Ana limpando a garganta saiu alto, trazendo o silêncio de todos. Ana ergueu o queixo, e sua voz, firme, mas sem necessidade de elevar o tom, ressoou claramente — Se organizem. Quero ver o padr?o básico de treinamento.

  Ao ouvirem a ordem, os soldados obedeceram de imediato.

  A maneira como cada grupo se alinhava com sua respectiva arma demonstrava uma disciplina que Ana n?o esperava. Os lanceiros estocavam com precis?o quase mecanica, enquanto espadachins tra?avam arcos com suas laminas, como se desenhassem padr?es invisíveis no ar. Já os pugilistas atacavam e recuavam, suas sequências fluindo como uma dan?a marcial perfeitamente sincronizada. Até os arqueiros e usuários de armas incomuns mantinham seu ritmo, suas m?os seguindo os movimentos repetitivos como se gravassem a técnica em seus ossos.

  — Surpreendentemente bem adestrados — comentou Ana, enquanto seus olhos acompanhavam cada movimento.

  Fernando chegou nesse momento, e sem nem mesmo perguntar, o novo grupo se juntou à exibi??o. A rainha sorriu, ainda mais satisfeita com o que viu.

  — Est?o diferentes de um minuto atrás, e est?o confiantes. N?o s?o os mais fortes... mas s?o ferozes. Vocês dois fizeram um ótimo trabalho.

  Seu olhar voltou-se para Alex e Fernando, e com um leve aceno de cabe?a, ela reconheceu seus esfor?os.

  — Vocês, se aproximem. — Ana apontou para alguns membros de cada grupo. — Me emprestem suas armas.

  Os soldados prontamente avan?aram e, um por um, colocaram suas armas diante da rainha.

  Ana ergueu a espada primeiro. Era pesada para uma lamina comum, mas n?o mais do que o esperado. O ar ao redor dela pareceu se contrair, como se o próprio ambiente segurasse a respira??o. A poeira, que antes repousava calmamente no solo, se ergueu lentamente, rodopiando ao redor dela com cada movimento da lamina, enquanto a luz suave do amanhecer refletia no fio da espada, criando um brilho breve, mas intenso.

  — Observem atentamente — disse, fazendo todos pararem seus movimentos repetitivos. — Mesmo que esta n?o seja a sua arma principal, há algo a se aprender.

  Ela respirou profundamente, sentindo o equilíbrio da arma em suas m?os. Seus olhos se estreitaram, concentrando-se no fio da lamina, e ent?o em um movimento suave, quase imperceptível para olhos destreinados... ela se moveu.

  N?o foi extravagante, mas houve uma precis?o e inten??o por trás dele que fez o tempo ao redor parecer desacelerar. Os músculos de Ana trabalharam em perfeita sincronia, e o som do metal rasgando o ar foi como um trov?o silencioso. Seus pés mal se moviam, e ainda assim, todo o seu corpo parecia participar do golpe.

  — Uma espada — come?ou, sua voz reverberando por entre as árvores. — N?o é apenas uma ferramenta. é uma extens?o da alma de quem a empunha. N?o corta só carne, corta o espírito, a vontade do oponente. O que um espadachim deve ser? Preciso, implacável, controlado. Ele faz o inimigo duvidar antes de atacar, e quando o golpe final é desferido, ele já venceu. Um corte deve ser o fim... de tudo. — a lamina percorreu o ar novamente, um arco perfeito que parecia rasgar a própria realidade.

  Todos que a assistiam notaram repentinamente que estavam suando. As m?os, antes firmes nas armas, agora tremiam ligeiramente, seus dedos apertando os punhos com for?a. Alguns sentiram seus cora??es acelerarem, como se a press?o invisível da técnica estivesse esmagando seus peitos.

  Um toque de temor podia ser visto em seus olhares enquanto engoliam em seco, tocando seus próprios pesco?os, conferindo se ainda repousavam onde deveriam. As respira??es ficaram rasas, e alguns nem mesmo piscaram, com medo de perder um segundo sequer daquele espetáculo aterrador.

  Sem hesitar, Ana largou a espada e agarrou a lan?a cravada no ch?o. O movimento foi rápido e preciso, como se a arma sempre tivesse feito parte dela. A lan?a girava entre suas m?os com fluidez, obedecendo a cada comando como uma parte de sua própria vontade, seus movimentos carregados com uma elegancia letal.

  — Uma lan?a é diferente. N?o é apenas uma arma de alcance. é uma ferramenta de precis?o. Sua finalidade é clara: abrir caminho, romper defesas. N?o importa o que esteja a sua frente, deve penetrar onde nada mais consegue. Se você empunha uma lan?a, deve fazê-lo com a convic??o de que pode perfurar o próprio mundo.

  Enquanto falava, seus dedos manipulavam a arma com facilidade, fazendo-a girar em arcos perfeitos, como um furac?o de a?o e madeira. Os movimentos eram graciosos, quase artísticos, mas havia uma tens?o palpável em cada gesto, como se estivesse prestes a explodir.

  Ent?o, sem aviso, ela parou. Seu corpo, antes relaxado, contraiu-se. Seu bra?o se estendeu em um instante, rápido como um relampago, e a ponta da lan?a, que antes se assemelhava somente a um borr?o, tocou sutilmente o tronco da árvore à frente. Tudo permaneceu imóvel, o ambiente silencioso, como se o tempo tivesse congelado.

  Ent?o, veio o estrondo.

  A madeira se despeda?ou, fragmentos voando em todas as dire??es. A for?a concentrada no toque havia se manifestado em um único ponto, e o impacto, silencioso no início, liberou toda a energia acumulada em uma explos?o brutal. A árvore, outrora firme e imponente, agora n?o passava de destro?os espalhados pelo ch?o.

  Os soldados observavam em um silêncio at?nito. O impacto da demonstra??o revelava a verdadeira essência da lan?a, devastadora, imparável, os atravessando como se eles quem tivessem sido atingidos pelo golpe.

  Sem mais rodeios, Ana a largou no ch?o e sua postura mudou imediatamente, os pés plantados firmemente no ch?o, o corpo relaxado, mas pronto para a a??o. Ela avan?ou com um soco que estranhamente n?o moveu o ar, seguido de um chute que, de forma semelhante, o cortou sem causar vibra??es.

  — Nas artes marciais — murmurou entre um golpe e outro. — O corpo é a arma. N?o há lamina, n?o há ponta afiada. Apenas você. Bem, há exce??es... — ela deu uma breve pausa, um sorriso sutil surgindo no canto de seus lábios. — Mas confie apenas em seus punhos, em suas pernas e em sua vontade.

  Diferente de suas exibi??es anteriores, que carregavam a grandiosidade de uma for?a bruta ou a precis?o letal de uma lamina, os movimentos de Ana agora eram mais sutis, quase silenciosos. Ela n?o precisava de espetáculo, cada a??o era calculada, eficiente, sem excessos. Seus pés se moviam com precis?o, seus punhos acertando o ar como se o moldassem. N?o havia nada de espalhafatoso, mas carregava uma sensa??o de controle absoluto.

  — Seja sutil, é uma dan?a entre você e o oponente. N?o espere gritos, n?o espere o brilho do metal. Respire, ataque e repita o processo. Seja como água: sem forma, capaz de se adaptar a qualquer situa??o. Flua, nunca resista. Cada movimento deve ser uma resposta, e cada resposta, um golpe devastador. N?o ataque o inimigo... absorva-o. E ent?o... destrua-o de dentro para fora.

  Por fim, após alguns minutos de demonstra??o, Ana seguiu para o próximo item, mantendo seu ritmo meticuloso. Com exce??o das artes marciais, ela apresentou apenas um movimento de cada arma, sem repetir. Era como se cada técnica fosse deliberadamente contida, resumida a sua forma mais pura. A simplicidade aparente de seus gestos quase beirava o bobo, algo que, em outros contextos, poderia ser considerado insuficiente. Afinal, o que alguém poderia aprender com t?o pouco?

  No entanto, ninguém ousou reclamar. N?o havia risos contidos, nem olhares de dúvida. O silêncio era pesado, como se o ambiente estivesse carregado de uma energia indescritível. Na verdade, ninguém sequer cogitava desdenhar daquilo. Os olhos de todos estavam vidrados, presos pelos movimentos de Ana, como se as dan?as que ela executava carregassem consigo algo muito mais profundo do que poderiam compreender à primeira vista.

  Ela n?o apenas ensinava... ela impunha.

  A sabedoria da monarca parecia ter uma vontade própria que n?o admitia ser ignorada, um domínio absoluto e palpável que n?o dava escolha a n?o ser absorver aquele conhecimento. Era como se estivesse gravando, à for?a, sua influência em seus corpos e mentes, deixando claro que tudo o que viam deveria ser lembrado, custe o que custar.

  N?o era uma aula, n?o era um treinamento.

  Era uma transforma??o.

  Naquele momento, a vontade da rainha havia se tornado a deles.

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