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Capítulo 123 - Canecas e Coroas

  Ao entrar na sala de trás do balc?o, o cheiro adocicado e levemente ácido da fermenta??o artesanal preencheu o ar, puxando a aten??o de Ana para o canto onde um rudimentar equipamento de fabrica??o de cerveja estava disposto. Suas engrenagens de metal polido gotejavam um líquido azul-claro, quase iridescente, que se acumulava em pequenos barris alinhados logo ao lado.

  Sobre uma mesa central de madeira rústica, grandes canecas de madeira repousavam, com partes translúcidas que deixavam escapar um brilho suave. O contraste entre a rusticidade da madeira e a intrigante bebida dentro delas chamou a aten??o de Ana, que arqueou uma sobrancelha, se perguntando o que exatamente estava diante dela. O cheiro era profundamente diferente da bebida comum que havia encontrado do lado de fora, uma diferen?a que despertou sua curiosidade instantaneamente.

  — Algo novo no menu? — comentou em voz alta, com um leve sorriso de curiosidade, chamando a aten??o das figuras sentadas ao redor.

  Três pessoas, além da Madame, estavam presentes. A primeira, Nyx, estava observando o conteúdo das canecas com seu habitual ar de curiosidade quase infantil, evidentemente tendo se intrometido na cria??o da nova bebida. Ana lan?ou-lhe um olhar compreensivo, e a Sombra retribuiu com um sorriso, enquanto levantava a caneca em dire??o aos lábios.

  Ao lado da barda necromante, havia um homem de aparência familiar, mas cuja identidade escapava à memória de Ana. Ela prolongou o olhar por um momento, afinal, tinha certeza que o reconhecia de algum lugar, mas foi inútil, realmente n?o conseguia se lembrar. Isso a incomodou brevemente, mas ela deixou de lado.

  E ent?o, viu a terceira pessoa, alguém realmente inesperado. A massa de músculos, Cassandra, estava claramente embriagada, suas bochechas coradas pelo álcool enquanto se esfor?ava para manter a compostura e virar-se para ver o novo visitante. Mesmo bêbada, sua presen?a impunha respeito, mas havia uma leveza em seu comportamento que trouxe certa nostalgia de suas conversas após as batalhas na arena.

  Antes que Ana pudesse sequer organizar suas ideias, Madame girou em seus calcanhares e a encarou com um olhar severo.

  — Ent?o é você, sua maldita! Como teve coragem de servir aquela água choca pros clientes? — a leitora gesticulou exageradamente, o dedo apontando para Ana com a autoridade de quem n?o aceitava desculpas.

  A recém chegada ficou confusa por um segundo, mas logo seus pensamentos se direcionaram para as rugas no rosto de sua velha conhecida. Anos se passaram desde a última vez que se encontraram pessoalmente, e mesmo a mana n?o conseguia evitar que as garras do tempo deixassem suas marcas. Com certa melancolia na voz, a rainha soltou uma gargalhada curta e despreocupada, fechando a porta atrás de si com um aceno para que seus acompanhantes a esperassem por um momento.

  — Clientes? Madame, nós nem abrimos oficialmente ainda.

  — Isso n?o importa! — a taverneira respondeu, cruzando os bra?os dramaticamente. — Devia ter feito algo melhor desde o come?o. Principalmente com esses mascarados t?o capazes ao seu redor, aprenderam a fazer depois de eu mostrar apenas uma vez!

  Ana balan?ou a cabe?a em uma mistura de divers?o e exaspera??o. Havia um toque de absurdo na situa??o. Sempre tinha. Ela abriu a boca para responder algo, mas foi interrompida por uma garganta sendo limpa com for?a.

  Jorge, o homem desconhecido, se aproximou, visivelmente desconfortável com a tens?o na sala. Com um gesto formal, fez uma breve reverência.

  — Sauda??es, Vossa Majestade — disse ele, com a voz contida, porém respeitosa. — Devo dizer que aprecio sua maravilhosa cidade das máscaras, e fico feliz de ver uma companheira de coroa tendo t?o grande ascens?o. Me chamo Jorge, e essa é minha companheira, Cassandra.

  "Droga”, pensou Ana, travando por um instante ao ouvir a frase, n?o pelo gesto sem necessidade, mas pela designa??o que foi dada para seu reino.

  “Eu sabia que estava esquecendo de alguma coisa… essa cidade precisa de um novo nome logo."

  Antes que pudesse dar continuidade a esse raciocínio, o homem puxou a grande guerreira para mais perto. A sua antiga dona trope?ou levemente, quase caindo de rosto no ch?o, mas conseguiu manter o equilíbrio por puro instinto. Curvou-se de forma desajeitada, ainda lutando contra os efeitos do álcool, mas com uma tentativa de formalidade, mesmo que falha.

  Ana observou a cena, seu humor mudando de imediato. Um lampejo de fúria passou por seus olhos, reacendendo brevemente a raiva que guardava dos acontecimentos relacionados à chefe da arena. O Abismo passou por trás de seus olhos, e era como se, por um segundo, o passado estivesse vivo novamente.

  Mas ent?o, ao ver Cassandra trope?ar, bêbada e vulnerável, algo dentro de Ana se quebrou. O peso do ódio que carregava por tanto tempo parecia fora de lugar, desatualizado. Ela respirou fundo, sentindo a fúria dissipar-se em uma única expira??o.

  “A situa??o faz a pessoa”, refletiu, como se estivesse finalmente enterrando aquela vers?o de si mesma. N?o estavam mais no Abismo, estavam em um novo mundo, um novo contexto, ent?o iria observar. Por enquanto. “Ainda assim, fico feliz que n?o estou com a espada…”

  Dando um passo à frente, Ana estendeu a m?o, e Jorge, um tanto hesitantemente, a apertou. Ele parecia incerto, como se n?o soubesse bem como agir diante da matriarca do reino emergente. Ainda assim, o toque de suas m?os foi firme, e a situa??o foi aliviada pela risada leve da rainha, que soou mais natural do que ela esperava.

  — é um prazer conhecê-los, mas pe?o que deixem de lado essas formalidades — disse, tentando quebrar o gelo. — Afinal, somos todos mercenários, n?o nobres! Me chamem apenas de Ana… bele.

  Sua voz vacilou levemente ao final da frase, e Cassandra e Jorge se encararam, como se notassem a estranheza.

  “Sou uma idiota”

  O cumprimento durou mais do que o necessário, e o clima come?ou a ficar um pouco desconfortável. Ana ajustou a respira??o, preparando-se para um possível confronto, mas Jorge, antes que pudesse dizer qualquer coisa coerente, deu um solu?o alto enquanto afrouxava os dedos.

  — Me… hic… desculpe… — balbuciou repentinamente, ficando cada vez mais vermelho de vergonha, mas mantendo um sorriso cordial. — Acho que bebi mais do que devia... Sendo assim, é um prazer, Anabele.

  Madame observou a intera??o por trás de sua caneca, com um brilho de compreens?o em seu rosto. Sem dar chances para que algo ocorresse, interrompeu-os com um sorriso malicioso.

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  — Ah, a nova nobreza! — disse ela, enquanto colocava sua bebida de volta na mesa. — O mercado de mercenários anda perdendo espa?o pras guildas. Mas parecem estar à altura das coroas, n?o acha?

  Confirmando que n?o emanavam um sentimento de amea?a, Ana suavizou o olhar, imaginando que nem mesmo se lembrariam da conversa na manh? seguinte.

  — S?o interessantes, n?o havia visto ninguém desse tipo nas cidades antes.

  — As coisas est?o mudando, querida! — respondeu Madame entre risos. — Adivinha, eles vieram do Abismo! Mas, bem… n?o é como se isso fosse uma novidade aqui, né?

  Ela gesticulou com as m?os para a sala, como se estivesse apresentando uma variedade de atra??es.

  — Sombras, corrompidos, mascarados… Isso é puro suco de globaliza??o!

  Ana balan?ou a cabe?a, sem jeito, enquanto uma pequena risada escapava de seus lábios. O exagero e a teatralidade de Madame sempre a pegavam de surpresa.

  — Sim… — murmurou, seu tom refletindo mais seriedade do que ela pretendia. — As mudan?as est?o surgindo de todos os lados ultimamente.

  Com um suspiro silencioso, puxou uma cadeira e se sentou entre eles. Nyx, que até ent?o estava quieta em seu canto, aproveitou a oportunidade para servir uma caneca de cerveja a Ana, que aceitou com um leve aceno de cabe?a. Em meio à movimenta??o, Madame se inclinou para frente. Seu olhar, antes brincalh?o, agora parecia mais atento, quase conspiratório, enquanto ela aproximava os lábios do ouvido de Ana o suficiente para que suas palavras n?o fossem ouvidas por mais ninguém.

  — Falando em mudan?a, confesso que estou surpresa com você… Por um momento, pensei que você fosse uma mascarada. Afinal, você sabe… — seus olhos brilharam em um tom azul-claro intenso, que rapidamente percorreu o corpo de Ana de cima a baixo, analisando cada detalhe com aten??o. Quanto mais se concentrava, mais notava o emaranhado de fios que parecia dan?ar pelo corpo da rainha, como uma tape?aria de energias vibrantes. — Mas agora vejo que é muito mais complexo do que isso... tem a ver com aquela jovem ali?

  Ela apontou casualmente para a Sombra, que, ao notar, acenou de volta, sem entender muito bem o motivo de estar envolvida na conversa.

  — N?o, ela é uma conhecida recente — respondeu Ana com um sorriso cheio de nostalgia. — A bagun?a que você vê em meu interior é algo de alguns anos atrás...

  Ela olhou ao redor, para as pessoas na sala, deixando o silêncio pairar por alguns instantes antes de concluir:

  — Mas isso é uma conversa para outro momento.

  Madame ergueu uma sobrancelha, evidentemente interessada, mas entendeu o recado. Ela sabia quando n?o pressionar. Com um aceno de cabe?a, permitiu que a mercenária mudasse o curso da conversa.

  — Bom, indo pro que interessa, estou surpresa por você ter aceitado me encontrar — Ana come?ou, um toque de ironia em sua voz, mas seus olhos revelavam uma sinceridade afiada. — Quer dizer, eu n?o achei que fosse recusar, mas minha reputa??o n?o está muito boa em Barueri… de qualquer forma, vejo que estava certa em fazer o convite, você já está até mesmo melhorando a cerveja da cidade. Imagino que já tenha em mente minha proposta.

  Madame hesitou, seus olhos buscando algo dentro de si. Por um momento, ela parecia vulnerável, uma express?o rara para alguém t?o enérgico e confiante.

  — Eu… realmente posso?

  — é claro que pode. N?o conhe?o absolutamente ninguém mais adequado.

  Os olhos envelhecidos da taverneira brilharam com uma intensidade renovada, sua postura firme se tornando ainda mais imponente. O sorriso dela se alargou, feroz, enquanto seus olhos encaravam os de Ana com uma intensidade elétrica. Embora Madame n?o pudesse ver o rosto de Ana por trás da máscara, sabia, sem sombra de dúvidas, que sua antiga rainha mercenária também estava sorrindo.

  — Ent?o… devo dizer que é uma honra estar sob seus cuidados, minha rainha.

  Se espregui?ando, ela se levantou da cadeira e come?ou a caminhar ao redor. Seus dedos passavam por cada entalhe da madeira das paredes, como se absorvesse os detalhes do local, e um rubor suave surgiu em seu rosto, denotando a excita??o que ela tentava, sem muito sucesso, esconder. Pela janela da porta, viu os poucos habitantes da cidade que aproveitavam seu descanso. Sentia como se estivesse em um sonho realizado.

  — Sim… isso é a pura fantasia… — sussurrou para si mesma, perdida em seu próprio mundo.

  De repente, como se tomada por uma súbita epifania, chutou a porta, fazendo-a abrir com um estalo, e subiu no balc?o com uma energia teatral. A aten??o de todos no sal?o foi imediatamente capturada, e ela abriu os bra?os, como se estivesse prestes a fazer uma grande proclama??o.

  — A partir de hoje, o Madame Eclipse abrirá suas majestosas portas para todos que desejarem uma romantica vida mercenária!

  Ela jogou as m?os para o alto, como se estivesse demonstrando uma grande vitória. Seus olhos brilhavam de antecipa??o, como se já pudesse ver o sal?o cheio de figuras de todas as partes do mundo, uma mistura de corrompidos, todos com belas armaduras, afiadas espadas ou infames armas de fogo, prontos para se lan?arem em novas aventuras.

  — Que espalhem as minhas palavras e que espantem as amarguras desta porcaria de mundo! E, claro, que bebam até cair nesse estranhamente belo entardecer!

  Seu entusiasmo e suas gargalhadas eram contagiantes, e todos os que estavam presentes come?aram a levantar suas canecas em um brinde animado. As risadas e os aplausos encheram o sal?o, enquanto Madame, em cima do balc?o, observava tudo com um sorriso triunfante.

  Ana, por sua vez, tinha um misto de divers?o e satisfa??o ao encarar a cena. Sabia que havia tomado a decis?o certa ao convidá-la para aquele posto. Por mais caótica e imprevisível que fosse, Madame tinha um magnetismo natural que parecia transformar qualquer lugar em um palco grandioso, um refúgio para os aventureiros e desajustados.

  Aquela intrigante taverneira era a única pessoa capaz de envolvê-la em uma real atmosfera fantasiosa, onde tudo parecia mais leve, onde tudo parecia possível.

  Em seu devaneio, quase n?o notou um estranho objeto brilhante voando em sua dire??o. Ele piscava sob a luz suave do ambiente enquanto rodopiava de forma elegante, quase como uma moeda. Por reflexo, ela o pegou no ar com facilidade, mas quando seus dedos se fecharam em torno do item, n?o p?de deixar de dar um leve bufar de descren?a.

  — Quase me esqueci de te entregar isso! — comentou de longe Madame, notando que o item foi recepcionado com sucesso e voltando a se engajar em uma animada conversa com alguns bestiais, gesticulando como de costume, completamente alheia ao que acabara de fazer.

  Curiosa, Ana abriu a m?o, apenas para notar que entre seus dedos repousava um broche em formato de uma coroa dourada e preta, meticulosamente trabalhado, mas claramente envelhecido. Diferente de qualquer coroa nova e resplandecente que ela já havia usado, este estava marcado com sinais do tempo. Arranh?es profundos atravessavam a superfície brilhante, e o ouro, outrora reluzente, agora carregava um brilho mais opaco, cansado, mas ainda forte em sua presen?a.

  Ela franziu o cenho, passando os dedos pelos detalhes finos e desgastados. E ent?o, a lembran?a veio à tona, finalmente compreendendo o que aquilo significava.

  — N?o precisava ter se preocupado tanto com isso, Madame…

  Era o emblema de sua m?e, a antiga rainha mercenária. O gesto de Madame foi novamente exagerado, mas ainda assim, Ana n?o p?de evitar um pequeno sorriso, guardando-o no bolso como sempre fez.

  — Realmente demorou para eu virar uma rainha de ouro aficionado… — murmurou, com certa ironia na voz.

  Antes que pudesse mergulhar mais nas memórias, o leve tilintar do sino da porta da taverna chamou sua aten??o. O som era parte comum do ambiente, assim como as vozes e risadas, contudo, Ana olhou por curiosidade, sua cabe?a girando ligeiramente em dire??o à entrada.

  Ali, envolta em seus cabelos de um vermelho profundo, uma figura cabisbaixa escondia seu semblante por trás de uma máscara de raposa.

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